1, fazer as unhas é dignidade

Dignidade é uma palavra que eu não sei direito o que significa. Acredito que acabo usando para coisas que não tenham um peso ou a legitimidade real. Questões filosóficas, que não é o que pretendo me ater. Trato, no momento, de coisas práticas e de crucial importância: como pintar as unhas e dormir.

Não. Não se trata de uma piada de mal gosto. Ou de babaquice da minha parte. Outro dia fui em uma Conferência em que ouvi a fala do Frei Betto, e dentre muitas das coisas bacanas ele disse que tratamos como “direitos humanos” questões que são “direitos animais”. Ou seja, se alimentar, cuidar da cria, estar saudável, ter um lugar para habitar seguro, limpo e protegido de catástrofes naturais, isso são coisas que temos de garantir aos animais. São direitos básicos. Humanidade é outra coisa. Ligada a valores, a possibilidade de escolha, ao empoderamento da própria vida, dignidade, expressão cultural…

Cada dia mais me dou conta, na própria pele. Com a maternidade muitas vezes não consigo comer, beber água ou ir ao banheiro quando quero. Não durmo quando tenho sono. Quase como uma tortura voluntária. Porém, não é a falta de comida que mais me dói. Não comer ou dormir acabam sendo uma escolha que faço, até de bom grado.

Quando Nicolas dorme, eu hesito ir na cozinha. Hesito encher as garrafinhas d’água. Não tenho vontade de enfiar qualquer coisa goela a baixo. Pois comer é mais que pura necessidade animal. O que eu quero é outra coisa.
Passo pelo menos 15 minutos zanzando pela casa sem saber direito o que me cabe (às vezes nesse meio tempo ele acorda, azar). Quero ficar quieta, em silêncio, comigo mesma. Quero ler um livro, fazer um desejo, ver meus e-mails, escrever. Às vezes só deito na cama e respiro. Ou me olho no espelho, ou arrumo minhas calcinhas no armário e tento lembrar que eu posso ser sexy se usar rendas.

Eu poderia continuar aqui uma infinita lista sobre meu estado físico (e mental) que levariam todos a me achar miserável, a sentir pena da vida difícil que levo. Mas não é isso. A maternidade (ou no caso, a maternidade ativa, o fato de ficar em casa sozinha com um bebê) tem suas coisas boas e seus lados ruins. Como tudo na vida. Quero sublinhar os bonitos mecanismos que trazem dignidade. As pequenas coisas que nos fazem humanos:

Tomar banho. Longo banho de água quente. Lavar os cabelos. Sem presa. (Sem me preocupar se o bebê chora, se alguém me chama. Como uma forma de olhar para meu próprio corpo, e me lembrar que ele é meu).

Pijamas bonitos. Agradeço sempre por tê-los comprado novos no fim da gravidez. Me sinto mais limpa, mais bonita, mais leve. Pelo simples fato da minha roupa harmonizar.

Pentear os cabelos.

Se olhar no espelho

Contemplar qualquer coisa esteticamente prazerosa. Um quadro, uma paisagem, um tapete, as plantinhas do meu quintal.

Tomar sorvete.

Escrever.

Receber um carinho.

Conversar animadamente com alguém.

Descobrir algo incrível.

Ir na análise.

Ler.

Lavar o rosto.

Passar filtro solar.

Toalhas cheirosas, felpudas e grandes.

Pingar lavanda nos travesseiros.

Que alguém te toque.

Pintar as unhas.

Nada disso é futilidade. Não são questões de segunda categoria.

Lembro, faz muitos anos, morava em Niterói. Íamos sempre no mesmo supermercado entre o apartamento e a faculdade. Tinha na porta sempre crianças pedindo para comprarmos artigos diversos, em troca de empacotarem as compras. Era desconfortante. Incomodo. Um dia uma amiga chegou desconcertada. Contou que a menininha havia pedido um creme de cabelo. Desses normais. Seda. E que ela havia sentido um misto de ofensa com dó.

Não. Não basta ter a barriga cheia. Nem sempre queremos macarrão.

Fazer as unhas não é besteira. É cuidado de si.
Há nisso uma força incrível. Como nas obras de arte no meio da cidade, os monumentos tantas vezes esquecidos. Para que servem, afinal? para nos lembrar da nossa história, para olharmos nossos corpos, para descobrirmos a beleza. Pois somos humanos.

2 comentários sobre “1, fazer as unhas é dignidade

  1. Vera disse:

    É isso.
    É como banalizamos as dores dos outros, as necessidades dos outros porque não são as nossas.
    Pq o ser humano, animal de hábitos, está sempre acostumado a colocar suas necessidades como verdade absoluta.

    Fazia tempo que não lia um texto com tanto sentido.
    Obrigada

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